O Projeto de Lei nº 6204/2019, atualmente em tramitação no Senado Federal, propõe uma transformação no sistema brasileiro de execução de títulos extrajudiciais. A proposta visa transferir aos cartórios de protesto — mais especificamente aos tabelionatos de protesto — a atribuição de processar e conduzir a execução de dívidas certas, líquidas e exigíveis, cujo título seja extrajudicial. Trata-se de uma mudança de paradigma que caminha no sentido da desjudicialização, buscando desafogar o Poder Judiciário e imprimir maior celeridade à cobrança de créditos.
A essência do projeto é clara: permitir que a execução de títulos executivos extrajudiciais, como notas promissórias, cheques, contratos, duplicatas e outros títulos executivos, seja feita por meio de cartório, sem a necessidade de ajuizamento de ação judicial. A proposta altera dispositivos do Código de Processo Civil, da Lei de Protesto de Títulos (Lei 9.492/97) e da Lei dos Cartórios (Lei 8.935/94), conferindo aos tabelionatos de protesto o poder de realizar atos típicos da fase executiva, como penhora, avaliação e alienação de bens.
Segundo o texto do PL 6204/2019, caberá ao exequente apresentar o título ao tabelionato de protesto competente, que notificará o devedor para pagamento no prazo de 5 dias úteis. O não pagamento ensejará o início da execução administrativa, com possibilidade de penhora de bens, inclusive mediante requisição de informações a entes públicos e privados. A atuação do cartório, em linhas gerais, espelha a lógica da execução judicial, mas com tramitação inteiramente extrajudicial — e com menor custo e tempo.
Os atos de constrição patrimonial poderão ser efetivados com base no convênio já existente entre os cartórios e o Poder Judiciário, como o acesso ao sistema Bacenjud (atualmente Sisbajud), Renajud, Infojud, entre outros. O devedor terá o direito de apresentar defesa, inclusive com possibilidade de suspensão dos atos executivos mediante caução ou depósito.
Vantagens e críticas
A principal virtude apontada pelos defensores do projeto é a desburocratização da cobrança de créditos, aliada à eficiência cartorária e à redução da sobrecarga do Judiciário. Conforme dados do CNJ, aproximadamente 40% dos processos em curso no país são execuções — e a imensa maioria diz respeito a títulos extrajudiciais.
Ao delegar a execução a um ente extrajudicial, dotado de fé pública e capilaridade nacional, o projeto busca inspirar-se em modelos de sucesso, como o italiano, o francês e o espanhol, que já adotam práticas semelhantes.
No entanto, há vozes críticas. Parte da doutrina e da magistratura teme que a desjudicialização possa comprometer a imparcialidade e a garantia do devido processo legal. A possibilidade de penhora de bens por ato de um tabelião — ainda que sob o crivo de eventual controle judicial posterior — levanta discussões sobre a constitucionalidade e a tutela jurisdicional efetiva. Além disso, não são poucos os que alertam para o risco de privatização da jurisdição, com eventual aumento de custos ao cidadão, em razão da remuneração dos cartórios pelos atos praticados.
Impactos práticos nos cartórios
Caso aprovado, o PL 6204/2019 alterará de forma substancial o papel dos tabelionatos de protesto. Esses órgãos, tradicionalmente restritos à lavratura de protestos, passarão a atuar como verdadeiros “executores extrajudiciais”, com atribuições semelhantes às de um juízo de execução.
A nova atribuição exigirá capacitação técnica, infraestrutura tecnológica e fiscalização efetiva por parte do Poder Judiciário, para evitar abusos e assegurar a legalidade dos procedimentos. Além disso, deverá ser regulamentada a atuação conjunta com registradores de imóveis e oficiais de justiça, principalmente para atos como penhora, registro de indisponibilidade e alienação de bens.
A lei também prevê que as Câmaras de Mediação e Conciliação vinculadas aos cartórios poderão atuar na resolução de conflitos, reforçando a busca por soluções consensuais antes da constrição patrimonial — outro ponto alinhado à política pública de desjudicialização.
Conclusão
O PL 6204/2019 representa uma guinada importante no processo civil brasileiro, ao propor a transferência da execução extrajudicial para os cartórios de protesto. A proposta tem o mérito de buscar celeridade e eficiência, mas exige cuidados quanto à preservação das garantias processuais, ao controle da atividade extrajudicial e à contenção de custos. Se bem estruturada e acompanhada por uma regulação adequada, a execução extrajudicial pode se consolidar como um mecanismo eficaz de recuperação de crédito no Brasil. Resta acompanhar os debates legislativos e a eventual aprovação do projeto, que poderá redefinir a forma como o Estado brasileiro lida com a satisfação dos direitos creditórios.
Por: Tomás Meireles Cardosol | OAB/SC 59.969A | Bertol Sociedade de Advogados