Herança Digital: O Desafio De Transmitir Bens Virtuais Na Sucessão

A transmissibilidade dos bens digitais na sucessão é um tema emergente e de grande relevância no direito contemporâneo. A ausência de uma legislação específica sobre a matéria levanta uma importante questão: os bens digitais podem ser considerados propriedade transmissível aos herdeiros?

Primeiramente, é necessário entender o que são bens digitais. Esses bens, que incluem contas de redes sociais, arquivos armazenados em nuvem e moedas digitais, são caracterizados como bens incorpóreos armazenados na internet, consistindo em informações de caráter pessoal que podem ou não ter valor econômico. A discussão central gira em torno de três hipóteses: se esses bens podem ser transmitidos como patrimônio; se são uma extensão dos direitos da personalidade e, portanto, intransmissíveis; ou se a decisão cabe ao autor da herança, através de disposição testamentária.

A insegurança jurídica é palpável. Sem uma regulamentação clara, não há garantias sobre o direito de sucessão desses bens, nem sobre a proteção dos direitos de personalidade e privacidade. A discussão jurídica precisa considerar os diferentes tipos de bens digitais e como eles se relacionam com os direitos da personalidade.

Os bens digitais patrimoniais, como moedas digitais, são mais facilmente reconhecidos como parte do patrimônio do falecido, devido ao seu valor econômico. No entanto, os bens digitais existenciais, que refletem projeções de direitos personalíssimos, apresentam uma complexidade maior. Nesses casos, os interesses de familiares que desejam acessar essas informações e de terceiros que podem ter suas privacidades invadidas entram em conflito.

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) traz um avanço significativo ao proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade no Brasil. Redes sociais, como Facebook, começaram a criar mecanismos para a destinação dos dados pessoais após a morte do usuário, oferecendo opções para transformar páginas em memoriais ou excluir contas permanentemente. Contudo, essa iniciativa ainda é insuficiente para resolver todas as questões jurídicas envolvidas.

O direito comparado oferece insights valiosos. Na Alemanha, por exemplo, um caso emblemático envolveu os pais de uma adolescente que faleceu em um acidente de metrô. Eles foram impedidos de acessar a conta da filha no Facebook, que havia sido transformada em memorial. O Tribunal Federal de Justiça da Alemanha decidiu que os pais tinham direito ao acesso, pois a herança digital do falecido pertence aos herdeiros. Esta decisão reconheceu o direito de herança sobre os direitos contratuais estabelecidos entre a falecida e a rede social, sem considerar o contrato como personalíssimo a ponto de impedir a transmissão dos direitos.

No Brasil, a discussão judicial ainda não foi tão aprofundada, mas já começaram a aparecer alguns casos. Em Minas Gerais, uma decisão contrária ao caso alemão negou o acesso da mãe à conta do Facebook da filha falecida, fundamentando-se na proteção dos direitos de personalidade e privacidade. Em outro caso, em Mato Grosso do Sul, a justiça acatou o pedido de uma mãe para excluir o perfil de sua filha falecida na rede social, considerando que não haveria lesão à privacidade e intimidade de terceiros.

A ausência de legislação específica no Brasil resulta em decisões judiciais que frequentemente protegem a privacidade e os direitos de personalidade post mortem. A tendência é não reconhecer os bens digitais, especialmente aqueles sem valoração econômica, como parte da herança. No entanto, a discussão está aberta para a possibilidade de disposição testamentária desses bens, permitindo ao autor da herança definir o destino de seus bens digitais.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já mencionou a existência da herança digital em suas decisões, reconhecendo que o tema está ganhando visibilidade nos tribunais. A ministra Nancy Andrighi, em um acórdão, destacou a possibilidade de a pessoa dispor de seus bens digitais em testamento, embora o caso em questão não abordasse diretamente os bens que compõem a herança digital.

Em conclusão, a herança digital é um campo em evolução que necessita de maior atenção legislativa e judicial. A regulamentação clara e específica é fundamental para assegurar direitos e evitar conflitos futuros, garantindo que tanto os direitos do autor da herança quanto de seus sucessores sejam respeitados. A utilização do testamento para dispor das últimas vontades em relação aos bens digitais pode ser uma solução viável enquanto a legislação não avança, proporcionando segurança jurídica e respeito à vontade do falecido.

Por Amanda Martins – Advogada OAB/SC 60.455 | Bertol Sociedade de Advogados